Por Raumi Joaquim de Souza¹
Para Voz do Movimento
A história do Brasil é marcada pelos antagonismos de raças, classes e interesses sociais diversos, a interligação dos três pilares terra, raça e classe estão presentes a todo o momento na formação do seu povo. Assim como em todas as regiões do País, na Bahia, há um histórico de revoltas e conflitos agrários, raciais e sociais desde a sua gênese até os dias atuais. Ao longo da metade do século XIX, por exemplo, se constituiu no Estado um ambiente favorável à resistência escrava, fundamentalmente “em primeiro lugar com o crescimento vigoroso da população negro-mestiça, em especial a dos africanos” (REIS, SILVA, 1989, p. 33). Foram importados cerca de 8 mil africanos por ano, para atender a demanda da economia açucareira, que desde o fim do século XVIII, “foram atingidos por certos ventos de prosperidade” (REIS, SILVA, 1989, p. 33).
Aqui podemos registrar diversas revoltas constantes que carregam características indígenas, negras e agrárias. “Na escravidão nunca se vivia em paz verdadeira, o cotidiano significava uma espécie de guerra não convencional” (REIS, SILVA, 1989, p. 33). Desde o Período Colonial, as lutas dos negros exprimem “as contradições do modo de produção capitalista em sua fase de acumulação mercantilista tendo as rebeliões, fugas e formação de quilombos como explicitação dos conflitos de classe e étnicos” (GEOGRAFAR, 2011, p. 11).
Só em Salvador os africanos, escravos e libertos, representavam 33% de uma população total de proximamente 65.500 habitantes, em 1835. (REIS, SILVA, 1989, p. 103). “A formidável densidade da população africana na Bahia favoreceu sua representatividade cultural, suas identidades étnicas e sua disposição à luta” (REIS, SILVA, 1989, p. 34). Para Reis e Silva a mera presença de um grande número de africanos na Bahia intimidava setores importantes da classe senhorial.
De acordo com José Reis e Eduardo Silva no livro “Negociações e Conflitos”, havia luta de classes o tempo todo, conflitos sem fim, mas havia também negociações que nada tinha a ver com relações harmoniosas entre escravo e senhor, havia sempre violência, um espaço social que se tercia de barganha e conflitos.
Portanto, o escravo foi um agente ativo, autor de uma enorme negociação política por autonomia tentando fazer a vida e a história.
A Revolta dos Malês, na cidade de Salvador, por exemplo, em 24 de janeiro de 1835 é considerada a mais importante feita por escravos urbanos nas Américas, foi organizada por africanos iorubás (chamados nagôs no Brasil), adeptos do Islã (os malês), mas contou com a participação de escravos, libertos e negros de diversas outras nações.
A revolta aconteceu no período imperial em meio à busca de liberdade religiosa e a libertação dos negros de origem islâmica das etnias nagô e huaçá. Apesar de ser reprimida pelas tropas imperiais, foi um movimento fundamental na luta pela libertação dos negros. Mobilizou mais de 1500 escravos defendendo suas crenças, cultos e costumes.
Os malês intentavam por meio da revolta, além de libertar os escravos islâmicos, extinguir a religião católica (que era a religião praticada pelos exploradores), implantando o islamismo e almejavam a tomada do poder. Porem, armados apenas com ferramenta de trabalhos não tiveram condições de vencer as armas de fogo da polícia que preparou uma emboscada impedindo a continuidade da revolta e provocando diversas mortes, ferimentos e pressões. Diversos líderes sofreram pena de mortes, foram fuzilados, açoitados e obrigados a realizar trabalhos forçados. Contudo, após a revolta, os negros passaram e ser mais temidos pelos fazendeiros que intensificaram diversas medidas de proibições, como a circulação de pessoas negras perante a noite e a prática aos cultos religiosos exceto os da religião católica.
Ali, os escravos e libertos, trabalhando juntos no sistema de ganho ou simplesmente vivenciando a maior flexibilidade (inclusive do anonimato) proporcionada pelo ambiente urbano, desenvolveram ou aprofundaram solidariedades étnicas e religiosas a partir das quais puderam organizar um discurso convincente de crítica à escravidão baiana. A rebelião teve uma multiplicidade de sentidos religiosos, étnicos e classistas, que se entrecruzaram num momento de crise da hegemonia senhorial numa Bahia politicamente dividida (REIS, SILVA, 1989, p.11).
Nem a conquista da abolição, em 13 de maio de 1888, que teoricamente resolveu o problema da escravidão, não solucionou a situação da população negra. A República, instaurada com um golpe em 15 de novembro de 1889, não se tornou realidade para a maioria da população brasileira, em especial para a população negra, haja vista que não foram tomadas medidas para a inserção dos negros no mundo dos “brancos”, ou melhor, na sociedade de classes como afirmou Florestan Fernandes.
Embora os negros que realizaram essas diversas revoltas estivessem em diversas tarefas, como, por exemplo, a pescaria, o trabalho na agricultura se sobrepunha e a sua luta era principalmente por território e liberdade, outra vez a questão agrária, junto à questão racial em defesa de uma classe.
A revolta do Malês está prestes a completar 200 anos, ocorreu na mesma década da abolição da escravidão e atualmente os negros continham acoitados ao trabalho mal remunerado sendo negados à dignidade humana. Dados do IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística mostram que no ano de 2020 a população negra brasileira somava a porcentagem de 54% e que o desemprego entre negros é 71% maior do que entre brancos (dados de agosto de 2020).
De acordo ao IBGE, historicamente a taxa de desemprego da população parda ou preta é maior que a dos brancos, porém no ano de 2020 essa diferença atingiu a um recorde. Em uma séria histórica de análise iniciada em 2012, a situação se agravou logo nos primeiros três meses mais intensos da pandemia do covid-19 (abril, maio e junho).
Abandonada à própria sorte, diante de um governo retrógrado, racista, que nem cria e nem intensifica as medidas para a melhoria da vida e da autoestima do seu povo, a maioria da população brasileira necessita marchar para a organização coletiva de novas revoltas sociais e raciais. Em um país desigual, quando a crise se acirra, a população marginalizada paga o preço com a própria vida. A pandemia do covid-19 comprovou ainda mais que o remédio é a promoção da igualdade sócio racial e que o governo não a fará, ela precisa ser desenhada pelo próprio povo. Já que foram por meio das revoltas como a dos Melês que proporcionamos a conquista da abolição, para os novos tempos necessitaremos de uma revolução antirracista em que o povo negro adquira consciência de classe e raça e ocupe os espaços que historicamente lhe foi negado.
¹ Raumi Joaquim de Souza é Licenciado em Arte Educação – UFPI, Mestre em Desenvolvimento Territorial na América latina e Caribe – UNESP, Artista, Arte Educador e Militante do Coletivo de Cultura do MST.
REFERÊNCIAS
FERNANDES, Florestan. Significado do protesto negro – Polêmicas do Nosso Tempo. São Paulo: Cortez Editora, 1989.
GEOGRAFAR. As Metamorfoses da Questão Quilombola na Bahia. In: Movimentos campesinos e indígenas na América Latina Título do Trabalho. XXVIII CONGRESSO INTERNACIONAL DA ALAS, UFPE, Recife-PE GT27 – 6 a 11 de set. 2011.
REIS, João José. A Conspiração Haussá de 1807 na Bahia. In: ALMEIDA, Luiz Sávio de (org.). O Negro no Brasil. Maceió-AL: Editora da Universidade Federal de Alagoas-EDUFAL, 2003, p. 75.
_______. “Nos achamos em campo a tratar da liberdade”: A Resistência escrava no Brasil Oitocentista. Disponível em: < http://www.erudito.fea.usp.br/PortalFEA/Repositorio/1181/Documentos/leitura_1_1_1.pdf> Acesso em: 25 jan. 2017.
Valor Econômico. Disponível em: <https://valor.globo.com/brasil/noticia/2020/08/28/desemprego-entre-negros-e-71percent-maior-do-que-entre-brancos-mostra-ibge.ghtml> Acessado em 23 jan 2021.